10 Ofuscamento
Versão 0.1.0 - 20/12/2025
O excesso de luz é um tipo de escuridão, já que ofusca97, e é assim que foi encerrado o período “Iluminista” das “Luzes”. Estamos agora na fase do ofuscamento pelo excesso de luminosidade, do “Hiperluminismo” que tende a produzir explosões de excesso informacional.
A Informação está entupindo tudo. Tamanha é a quantidade de informação que não sabemos mais o que fazer com ela. Como uma montanha de lixo nos soterrando.
Num mundo assim, a Informação, em estado bruto, seria algo não exatamente parecido com a analogia frequentemente usada de minerais a serem processadsos para extração de metais e terras raras, mas sim como lixo98 a ser ingerido e tratado para, com sorte, obter algum conhecimento precioso.
Informação é lixo quando alguém não precisa dela. Quando ela invade o campo cognitivo pela notícia que fisga, pela propaganda imposta. Alguém que aprendeu a ler visualmente dificilmente consegue ver um texto e escolher não interpretá-lo. Ou alguém que escute uma conversa em seu próprio idioma sem discernir o que é dito. Neste sentido, a alfabetização e o aprendizado de linguagens em geral, sejam faladas ou escrita, para além de ser um dos rituais de entrada na vida social, também acabam sendo uma passagem sem volta para o mundo da informação: rituais de passagem que vão além da inclusão social, caminho sem volta para a exposição informacional. Não dá pra tapar facilmente os ouvidos ou não interpretar palavras lidas!
É esse excesso de informação, transformada em lixo, que impulsiona vários procedimentos computacionais de seleção e classificação, inclusive os métodos estatísticos conhecidos como “Inteligência Artificial”99 (IA).
Este processo aprofunda a crescente divergência entre Informação e Inteligência: duas palavras que anteriormente eram praticamente sinônimos - Informação e Inteligência – vão divergindo cada vez mais.
“Inteligência” fica cada vez mais associada à estratégia, ao sigilo, ao segredo – domínio dos Serviços Secretos – assim como também pela capacidade de processar o lixo informacional para obter um produto que seria de “alto nível” e chamado de “conhecimento”, enquanto que “Informação” cada vez mais está ligada ao rejeito comunicacional que pode ser de alguma maneira reaproveitado. Inteligência se aproxima da estratégia, e Informação do lixo.
Aquilo que é chamado de “Inteligência Artificial” basicamente é um processo de extração de valor em cima da coleta e classificação de lixo informacional, conclusão que chego tanto pelo contato com o trabalho de doutoramento da minha amiga Nahema100 quanto pela minha própria experienciação do mundo e constatação de que informação cada vez mais se assemelha a rejeitos industriais101.
A “Inteligência” então é uma palavra que está cada vez mais se distanciando de outras como conhecimento, sabedoria, sagacidade, argúcia etc – nenhuma delas palavras tendo o mesmo sentido que “Inteligência” vem ganhando, menos ainda que “Informação”102.
O artíficio da “Inteligência” “Artificial” é a utilização de “algoritmos”103 para extração de “inteligência” a partir dos depósitos de “lixo informacional”.
Ou seja, resumidamente, o conceito de “informação” tem se afastado do conceito de “inteligência” e se aproximado do conceito de “lixo”:
A informação, por um lado, se tornou ferramenta de controle usada descontroladamente, a ponto de gerar um excesso de sinais emitidos na expectativa de “fisgar” algum sistema de interpretação/processamento – como por exemplo uma pessoa afetada pela propaganda –, numa poluição cujo efeito global é a transformação da informação em lixo. Por outro, a informação se tornou aquilo que pode ser captado como rastro, rejeito e efeito colateral da atividade das pessoas – sensores, equipamentos de monitoria, registros de interação etc – que também constitui uma espécie de poluição residual da atividade humana.
A inteligência, por sua vez, passou a ser a atividade de processamento desse lixo para ordená-lo e utilizá-lo como base para gerar mais informações emitidas, multiplicando ainda mais a poluição informacional.
Assim, informação e inteligência descolaram-se nos últimos cem anos. Inteligência está passando a se tornar um termo mais e mais específico, mais e mais afunilado e que prioriza mecanismos de extração e ordenação informacional para decisões rápidas em detrimento de capacidades cognitivas como o juízo.
É inegável o aumento da daquilo que é considerado como conhecimento. A maior disponibilidade, acesso e afluência de estudos, juntamente com o aumento de quantidade de cientistas, exponenciou a produção e publicação de pesquisas. Mas o acesso a esse material continua muito restrito a segmentos, setores e classes sociais, e é ofuscado pela enorme quantidade de outros conteúdos. O grosso desse conhecimento gerado acaba sendo mais aproveitado pela maquinaria estadística, além de ser comummente privatizado e cerceado por interesses empresariais.
O conceito de informação também retém seu próprio paradoxo: por um lado é controle, é informação útil, bem formada, com significado etc; por outro lado é poluição ambiental, puro lixo, que dificulta a obtenção da própria inteligência – há muita “informação” para ser filtrada e processada, necessitando de mais e mais sistemas de “inteligência artificial” para recolhê-la – ou “minerá-la” – armazená-la, ordená-la, filtrá-la e processá-la. Para então posteriormente emitir mais informação, poluindo mais o ambiente e requerendo mais e mais sistemas para processamento e ordenação.
No meio de tanta lixarada, tentativas de organização conceitual surgem na intenção de salvar o termo “informação”, mas que quando muito apenas escondem e ofuscam ainda mais o problema. Uma delas consiste em chamar qualquer sinal registrado como “dado” – ou “dados”, no plural –, sem critério de valor, factualidade etc; enquanto que informação seria a porção já processada, ordenada e com significado. Já a inteligência seria composta por inferências, avaliações, julgamentos etc realizados a partir da informação – como tendências, projeções, criação de cenários etc.
Etimologia 10.1 (Dado) Do latim, via Glare (1968) pág. 485: datarius, datatim, datio, datiuus, dato, dator, datum, datus. Aquilo que é dado, oferecido ou fruto de um débito. Dado por alguma pessoa ou até dado pelos deuses. Cuja raíz latina – segundo Glare (1968) pág. 566 – é dō, de dar, oferecer, conceder…
O uso da expressão dados tem aumentado nas últimas décadas, e especialmente nos últimos anos, substituindo ou suplantando o de informação em diversos contextos.
É nesse sentido que Floridi (2004) afirma que a teoria de shannon não seria sobre informação, mas sim uma “teoria matemática de comunicação de dados”104; ele vai adiante distinguindo uma Definição Geral de Informação (General Definition of Information - GDI) de uma Especial (Special Definition of Information - SDI), na qual uma informação seria composta por dados “bem formados” (sic), consultas, significação e factualidade.
Tem sido difícil diferenciar o uso que se faz entre dados e informação por conta de encontros e desencontros terminológicos, assim como mudanças constantes.
Se, por um lado, “dados” referem-se mais ao conteúdo bruto e informação àquilo que é processado, por outro “informação” seria composta de dados (enquanto sinais codificados) mas com interpretações e significados; por outro lado, falar de “dados” como algo bruto – no sentido de fundamental, cru, básico, neutro, sem tratamento etc – não é correto, pois a codificação de fenômenos em dados implica em aproximações e interferências; nem que dados careçam de interpretação. A confusão conceitual abunda, e qualquer escolha das definições de informação e dados, assim como a relação entre ambas, tende a ter aplicabilidade mais específica do que geral.
O problema persiste mesmo que esta nomenclatura diferenciadora entre dados e informação seja adotada: uma porção enorme de dados processados e apresentados enquanto “informações” bem formadas, possuindo significados e até mesmo ligadas a acontecimentos – anúncios, notícias não solicitadas etc – tem constituído uma enorme parcela da “comunicação” enquanto lixo.
References
O excesso de informação é brilhantemente abordado no conto “The Sixth Sally, or How Trurl and Klapaucius Created a Demon of the Second Kind to Defeat the Pirate Pugg”, de Lem (1974).↩︎
Para fins provisionais, entendamos “lixo” como o indesejável que é descartado, ou aquilo que ainda não se sabe o que fazer, aquilo que se descarta sem extrair valor (descarte, refugo). Mas que outro alguém possa “minerar” para extrair valor e com custos cada vez mais crescentes. Mesmo a reciclagem, vista como um processo restaurador e limpante, tem um grande custo de realização. Quando mais algo estiver “lixificado”, maior o custo de extração de algum valor, a ponto de que possa demandar mais custo de processamento do que valor obtido.↩︎
No inglês diz-se Artificial Intelligence - AI.↩︎
Falleiros (2024a) mostra como, longe de realizar um “projeto leibniziano de liberar o juízo”, as “Inteligências Artificiais” de hoje escondem novas velhas formas de exploração e alienação do trabalho humano, numa deprimente relação parasitária entre “máquinas aprendizes” e “humanos atarefados”. Versão resumida em Falleiros (2024b).↩︎
O documentário “The Cleaners” – Block e Riesewieck (2018) – é um ótimo exemplo da classificação feita por humanos de informação enquanto seleção em meio a um lixo informacional, atividade insalubre e com sérias consequências psicológicas.↩︎
Ao mesmo tempo que se contrapõe, “Inteligência” se alimenta de “Informação”, algo ilustrado por exemplo pela prática chamada de “Open Source Intelligence” / “Inteligência de Fonte Aberta” (OSINT).↩︎