23 O mistério da palavra fōrma
Versão 0.0.14 - 14/12/2025
Não foi a intenção deste trabalho “resolver” a questão das raízes da palavra forma. O mistério persiste, e aqui deixo algumas anotações relevantes sobre o que encontrei, embasando a argumentação precedente.
23.1 Etimologia popular da palavra fōrma
No verbete fōrma de TLL (2019a)249 há um trecho de um interessantíssimo e antigo relato sobre sua etimologia (de origine):
DON. Ter. Phorm. 107 fornum veteres ignem et calorem quendam quasi fervorem dixerunt, et ideo fornaces, . . . -am et formosos, ex quibus amoris ignis exsolvitur. laudandus ergo Terentius proprietate servata, qui cum ‘-am’ praetulisset. subiecit ‘exstinguerent’. 108 bene ‘exstinguerent’, quia -a calor. ibid. -a ab igne et calore dicta est.
Trata-se de um comentário de Donatus250 sobre os versos 107 e 108 da peça Phormio do escritor Terenti, cujos versos em latim são os seguintes251:
[…] ni vis boni In ipsa inesset forma, haec formam extinguerent.
Uma tradução inglesa e em prosa destes versos seria252:
had there been not an excess of beauty in her very charms, these circumstances must have extinguished those charms
Parte desses comentários de Donatus253 é reproduzida a seguir:
fornum veteres ignem et calorem quendam quasi fervorem dixerunt, et ideo fornaces, forcipes, formam et formosos, ex quibus amoris ignis exsolvitur, laudanus ergo Terentius proprietate servata, qui cum ‘formam’ praetuisset, subiecit ‘exstinguerent’
[…]
IN IPSA INESSET FORMA HAEC FORMAM EXSTINGUERENT figura πλοκή; aliud enim supra, aliud infra ‘forma’ repetita significat […] EXSTINGUERENT bene ‘exstinguerent’ quia forma calor […] Et ‘forma’ ab igne et calore dicta est.
Me falta um conhecimento minucioso da língua latina para verter esse trecho ao português, porém consigo entender que nessa etimologia antiga a palavra forma é associada ao forno, ao fogo, ao calor e à beleza.
Por sorte, encontrei uma tradução do trecho de Donatus para o francês em Laborie et al. (2009), aqui traduzida para o português pela amiga Nahema Falleiros:
os Antigos chamavam de fornus (forno) um fogo e calor quaisquer no sentido de feruor (calor), daí vêm fornax (fornalha), forceps (tenazes), forma e formosus (belo), expressões que designam o fogo amoroso[716]. Deve-se portanto louvar Térence por ter conservado o sentido próprio desta palavra, já que, embora ele tenha colocado formam anteriormente, ele acrescenta exstinguerent.
[…]
1 IN IPSA INESSET FORMA HAEC FORMAM EXSTINGVERENT figura de repetição (πλοκή): pois o sentido de forma difere da primeira e segunda vez[718]. 2 in ipsa inesset formam ele reduplica a preposição[719] como alhures: « in amore haec omnia insunt uitia ». 3 EXSTINGVERENT exstinguerent está bem dito, porque forma é um calor. 4 E forma está etimologicamente ligada à noção de fogo e calor[720].
[…]
Notas
- Ernout e Meillet (DELL) consideraram a reaproximação entre “forma” e “formus”, “fornax”, etc., como uma etimologia popular (que se encontra igualmente no compêndio de Paul-Diacre). Não a encontramos em nenhum outro gramático além de Donat. “Formus” (da mesma raíz que o grego θερμός, “quente”) é um adjetivo que só foi conservado por gramátcos e lexicógrafos para explicar “forceps”, nome de uma pinça que serve para agarrar (“-cep”, de “capio”) os objetos quentes (“formus”) ou nomes da fornalha. Quanto ao substantivo “forma”, não há etimologia satisfatória.
[…]
- Donat considerou geralmente que há “plokè” quando a mesma palavra é repetida com duas naturezas diversas (substantivo e particípio por exemplo). Aqui trata-se de dois sentidos diferentes do mesme substantivo, que significa primeiramente “aparência” e depois “beleza”.
[…]
- Existe um adjetivo “formus” semelhante a “θερμός” e que não tem nada a ver com “forma” e “formosus” (cf. a nota na [página] 107.3). Donat parece, pela etimologia popular, confundir as duas séries em uma só, como se trata, com efeito, de dois empregos diferentes da mesme palavra. Por isso ele fala de πλοκή.
Um comentário do verbete fōrma em Ernout e Meillet (2001) se faz relevante254:
Os antigos (cf. Don. ad Ter., Ph. 107-108) anexam fōrma à formus “quente”, fornus, fornāx; esta é apenas uma etimologia popular, apesar de Müller-Graupa, Gl. 31, 129.
Nenhuma anexação satisfatória: ō torna isso particularmente difícil. Sem dúvida emprestado. O fechamente do o na frente do r + consoante lembra a passagem do e ao i nas formas dialetais stircus, Mirqurios, osq. amirikalud. Um empréstimo do gr. μορφή é possível, por um intermediário etrusco. Trata-se de um termo técnico, relacionado à florescente indústria dos etruscos. M. Benveniste considera a possibilidade de _*mōrma_ com uma dissimilação como em formīca. V. Ernout, Aspects, p. 66.
Seville et al. (2006) também oferece várias explicações para forma nessa mesma linha de forma, beleza e calor255:
The qualities of verbs are: derivational forms, moods, conjugations, and voices [and tenses]. 3. ‘Derivational forms’ (forma) of verbs are so called because they inform (informare) us about some particular deed, for through them we show what we are doing.
[…]
Formosus (“beautiful”) is written without an N (i.e. not formonsus), because it is so called from forma (“beauty”), [or from formus, that is, ‘warm’; for warmth of blood produces beauty].
[…]
- Good-looking (formosus) is so called from appearance (forma); the ancients used formus for ‘warm’ and ‘heated,’ for heating arouses blood, [and] blood arouses beauty.
[…]
- Good-looking (speciosus), from appearance (species) or looks, as beautiful (formosus) is from shape (forma).
Daí viria a associação feita entre forma, similitude e idolatria enquanto um culto às formas dos criadores de formas256:
The use of likenesses arose when, out of grief for the dead, images or effigies were set up, as if in place of those who had been received into heaven demons substituted themselves to be worshipped on earth, and persuaded deceived and lost people to make sacrifices to themselves. 6. And ‘likenesses’ (simulacrum) are named from ‘similarity’ (similitudo), because, through the hand of an artisan, the faces of those in whose honor the likenesses are constructed are imitated in stone or some other material. Therefore they are called likenesses either because they are similar (similis), or because they are feigned (simulare) or invented, whence they are false. 7. And it should be noted that the Latin word also exists among the Hebrews, for by them an idol or likeness is called ‘Semel.’ The Jews say that Ishmael first made a likeness from clay. 8. The pagans assert that Prometheus first made a likeness of humans from clay and that from him the art of making likenesses and statues was born. Whence also the poets supposed that human beings were first created by him – figuratively, because of these effigies. 9. Among the Greeks was Cecrops, during whose reign the olive tree first appeared on the citadel, and the city of Athens received its name from the name of Minerva. 10. He was the first of all to call on Jupiter, devise likenesses, set up altars, and sacrifice offerings, things of this kind having never before been seen in Greece.
Idolatry (idolatria) means the service or worship of λατρεία idols, for in Greek is translated in Latin as servitude (servitus), which as far as true religion is concerned is owed only to the one and only God.
Just as impious pride in humans or demons commands or wishes for this service to be offered to itself, so pious humility in humans or holy angels declines it if it is offered, and indicates to whom it is due. 13. An idol (idolum) is a likeness made in the form of a human and consecrated, according to the meaning of the word, for the Greek term εἶδος means “form” (forma), and the diminutive idolum derived from it gives us the equivalent diminutive formula (“replica,” i.e. an image made in a mold). 14. Therefore every form or replica ought to be called idol. Therefore idolatry is any instance of servility and subservience to any idol. Certain Latin speakers, however, not knowing Greek, ignorantly say that ‘idol’ takes its name from ‘deception’ (dolus), because the devil introduced to creation worship of a divine name. 15. They say demons (daemon) are so called by the Greeks as if the word were δαήμων, that is, experienced and knowledgeable in matters, 10 for they foretell many things to come, whence they are also accustomed to give some answers.
23.2 Ocorrências da palavra fōrma
Segue um resumo da checagem inicial da estrutura de ocorrências e significados do verbete fōrma no “Thesaurus Linguae Latinae”257 Quando indicadas, as autorias referem-se à primeira ocorrência conhecida, em ordem cronológica, tipicamente a ordem em que os trechos estão dispostos nos verbetes deste dicionário, vide o Index librorum scriptorum inscriptionum ex quibus exempla afferuntur258 e o documento Article structure259 do mesmo):
- I de rerum qualitate:
- A de figura externa:
- 1 sensu proprio:
- a: de corporeis:
- α de animantibus: Cn. Naevius (270-201 AEC).
- β de rebus: Marcius Porcius Cato Censorius (234-149 AEC).
- γ:
- in universum: Varro (116-27 AEC).
- εἶδος sensu Aristotelico: Sêneca o Jovem (4 AEC - 65 EC).
- b de incorporeis: Varro.
- a: de corporeis:
- 2 sensu limitatu: ?
- 1 sensu proprio:
- B de habitu et ratione:
- 1 ita ut species, aspectus significetur: Cícero (103-43 AEC).
- 2 ita ut nom tam externus habitus aut species quam interna velut
dispositio et qualitas spectetur:
- a fere i. q. genus: Cícero.
- b fere i. q. modus et ratio, qua res aliqua agitur: Cícero.
- c fere i. q. ordinatio, dispositio, status: Cícero.
- d fere i. q. natura, vis χαρακτήρ: Cícero.
- e fere i. q. ‘Begriff’: Cícero.
- A de figura externa:
- II de ipsis rebus formatis (praeter ea exempla, quibus prevalet
notio imaginis vel exemplaris:
- A de animantibus: Cícero.
- B de rebus:
- 1 de corporeis:
- a de figuris corporatis: Lucrécio (~97-55 AEC).
- b de rebus arter quadam factis: Cícero.
- 2 in mathematica: Martianus Minneius Felix Capella Carthaginiensis (?).
- 3 de incorporeis:
- a in grammatica: Varro.
- b in rhetorica: Cícero.
- c in jurisprudentia: Virgílio (70-19 AEC).
- d i.q. formula certis verbis concepta: Tertuliano (fim do século II, início do século III EC).
- e i.q. decretum imperatoris, magistratum sim: Marcus Cornelius Fronto (século II EC).
- f in medicina: Isidoro de Sevilha (séculos VI-VII EC).
- 1 de corporeis:
- III prevalente notione imaginis vel exemplaris:
- A i. q. imago ad similidudinem alicuius rei formata:
- 1 proprie:
- a i. q. effigies, simulacrum: Cícero.
- b i. q. de scriptio, delineatio: T. Livius Patavinus (59 AEC - 17 EC).
- 2 translate: Ovídio (43 AEC - 17 ou 18 EC).
- 1 proprie:
- B i. q. exemplar, ad cuius similitudinem res aliqua formatur:
- 1 proprie.
- 2 translate:
- a i. q. exemplum, quod ad imitandum proponitur: Varro.
- b fere i. q. regula, norma sim.: Cícero.
- c i. q. ἰδέα sensu Platonico: Cícero.
- A i. q. imago ad similidudinem alicuius rei formata:
Incrementos futuros deste estudo poderiam conter outras considerações filológicas e métricas, como a ocorrência cronológica do termo numa tabela/gráfico quantidade de ocorrências em função do ano/século/período estimado. Mas para isso é necessário ter acesso a um corpus completo da língua latina num formato que facilite esse tipo de análise.
References
TLL (2019a) págs. 1065-1082. Referência dada também em Maltby (1991) pág. 240.↩︎
Checar Demetriou (2014) e Beeson (1922) a respeito de Aelius Donatus, seus comentários e as várias “vicissitudes” na sua transmissão ao longo dos tempos.↩︎
Vide Afer (1806) pág. 313; também em Afer e Fleckeisen (1897) pág. 167 e Afer (1820) pág. 373.↩︎
Vide Terence (1893) pág. 309; uma outra tradução, em verso, está em Terence (1893) pág. 571.↩︎
Disponíveis na íntegra em fontes como Donatus e Karsten (1913) págs. 232 e também em Donatus e Wessner (1905) pág. 378.↩︎
Ernout e Meillet (2001) pág. 247. Verbete também em Ernout e Meillet (1951) págs. 439-440. Traduzido aqui para do francês para o português pela amiga Nahema Falleiros.↩︎
Seville et al. (2006) I.viii.5-ix.6 pág. 45; I.xxvii.4-xxvii.20 pág. 53; X.F.99-G.112 pág. 219; X.R.235-S.247 pág. 228.↩︎
TLL (2019a) págs. 1065-1082; verbete compilado por J. Kapp.↩︎
Tais como listados no “Thesaurus Linguae Latinae”, TLL (2019a) págs. 1065-1082↩︎
Como no verbete forma de Smith (1859) pág. 545: forma enquanto de fôrma (molde), no mesmo sentido da grega τύπος (afinal, trata-se de um dicionário de objetos). Também em Smith (1890) págs. 872-873↩︎