9 Engolfamento
Versão 0.1.0 - 20/12/2025
Uma das primeiras consequências dessa mudança da relação entre informação e inteligência está no comentário sobre a informatização de Walter Benjamin93 que, ao que me consta, parece ser a primeira teoria crítica do conceito “moderno” de informação.
Ela descreve o descenso da arte da contação de histórias: com a chegada da imprensa/impressão, a transmissão de história (oral) passa a ser gradualmente suplantada pela novela, que teve uma lenta maturação desde a antiguidade. No aprofundamento desse processo, informação passa a substituir a inteligência, estando pronta para consumo instantâneo, sem necessidade de interpretações adicionais94:
it is no longer intelligence coming from afar, but the information which supplies a handle for what is nearest that gets the readiest hearing. The intelligence that came from afar – whether the spatial kind from foreign countries or the temporal kind of tradition – possessed an authority which gave it validity, even when it was not subject to verification. Information however, lays claim to prompt verifiability. The prime requirement is that it appear “understandable in itself.” Often it is no more exact than the intelligence of earlier centuries was. But while the latter was inclined to borrow from the miraculous, it is indispensable for information to sound plausible. Because of this it proves incompatible with the spirit of storytelling. If the art of storytelling has become rare, the dissemination of information has had a decisive share in this state of affairs.
A teoria da informação de Walter Benjamin contrapõe os encontros e a histórias contadas oralmente com as “mídias” que destroem a experiência em primeira pessoa, especialmente daquelas vividas diretamente por viajantes que, ao retornarem, compartilham suas histórias não somente compostas de fatos, mas também de impressões e interpretações.
Com os correios, a imprensa, os telégrafos, o rádio, a televisão, a telefonia, a Internet e outras traquitanas, a atualização dos fatos chega antes das pessoas. A proeminência de figuras como Heródoto, Marco Polo e tantas outras pessoas viajantes-contadoras é gradualmente substituída pelo conteúdo da informação enquanto notícia, e as viajantes tendem a se tornar no máximo “correspondentes de imprensa”.
Essa nova informação perde o valor assim que chega, enquanto na história do viajante há uma riqueza de maior duração95:
The value of information does not survive the moment in which it was new. It lives only at that moment; it has to surrender to it completely and explain itself to it without losing any time. A story is different. It does not expend itself. It preserves and concentrates its strength and is capable of releasing it even after a long time.
A valorização deste tipo de Informação desvaloriza a longa contação de histórias que demoram para ser compostas, contadas e interpretadas. Também pode ser considerada como uma desvalorização do humano e das experiências individuais.
A informação que chega rápido e num tamanho compacto passa a ser cada vez mais a regra que permite decisões igualmente rápidas e compactas que possam ser passadas adiante como mais informação.
Neste cenário, processar informações em quantidades e taxas cada vez maiores e extraindo um “conhecimento” que viabilize decisões úteis, atitudes efetivas e ganhos garantidos passa a ser crucial, dado o mundo competitivo e antagonista do universo cada vez mais (ultra-neo)liberal de indivíduos, empresas e Estados Nação.
Analogamente, torna-se estratégico proteger informações valiosas para que não estejam disponíveis para a concorrência processar e extrair resultados semelhantes ou mesmo melhores.
Indo um pouco mais além, pode ser também vantajoso para muitos atores desta competição inundar o mundo com informações desconexas, desencontradas, de baixa factualidade, desimportantes etc para confundir e direcionar oponentes, especialmente quanto estes são populações inteiras.
Por isso que a Informação enquanto categoria é também uma categoria da disputa, do conflito e da guerra, como que a versão infraestrutural do famoso mote “conhecimento é poder”. Só que informação não necessariamente é poder. Pode ser também confusão, desencontro e derrota.
É da dinâmica do mundo em conflito que esse novo entendimento do que é Informação, arrojado e utilitário, ganha terreno, o qual está imbuído de premissas que desembocam na lógica da disputa: obter as melhores informações para si, descartando o que não interessa ou tem valor; emitir informações que sejam benéficas para si, sejam estas para direcionar ou confundir outros agentes.
O que seria esta senão a lógica dos Serviços Secretos e agências de espionagem? Estes prefiguraram tal uso tático-estratégico da informação desde a virada da Estadística durante o Iluminismo, mas que no Hiperluminismo passa a ser um comportamento muito mais difundido e inserido na racionalidade premente de internalizar vantagens e externalizar desvantagens.
O efeito composto desta miríade de emissores informacionais em escalada pela preponderância na captação, decisão e promoção da confusão é a prevalência de um novo aspecto da Informação: um engolfamento geral, com todos os agentes afundando numa quantidade cada vez maior de informação de qualidade duvidosa. Manter-se na superfície implica ter capacidade suficiente de processar e produzir informações, assim como tomar decisões em tempo hábil, o que tem sido um privilégio bem restrito.
O excesso de informação torna-se paradoxalmente análogo à desinformação, seja um excesso produzido intencionalmente ou advindo da própria quantidade de informação disponível. O excesso de informação propaga a desinformação ao tornar difícil e trabalhosa a seleção e processamento de informações que sejam úteis e acionáveis, no sentido de permitirem ações efetivas.
Este é o paradoxo da (des)informação: aquilo que forma também pode deformar e, com a intensificação da dimensão agonística neste jogo, a situação fica cada vez mais extrema.
O dano provocado pelo uso adversarial da informação não é apenas representado pela palavra “desinformar”, que significaria originalmente uma retirada de informação, mas também (complementarmente) uma deformação, composta pela remodelagem de um sistema desde uma forma anterior para uma forma posterior e em seu desfavor.
Modos da desinformação incluem factóides – fatos recentes pretensamente importantes – ou sua versão em alta-frequência e quantidade, que chamo de imediatóides; assim como notícias falsas (“fake news”), dados forjados, propaganda, conteúdo não solicitado (“SPAM”), roubo de pauta e de atenção, manipulação e guerra psicológica, “deep fakes”, ataques de negação de serviço (DoS - Denial of Service); campanhas de desinformação do tipo “smear campaigns”; etc. Não é somente o falso e a mentira que poluem, como também a notícia e o assunto que desviam a atenção das pautas mais urgentes.
Relacionar informação com critério de veracidade também revela-se problemático: por um lado, há uma expectativa de que informações contenham verdades sobre o mundo – mesmo que apenas algumas verdades entre tantas mentiras –, por outro é muito fácil confundir informações plausíveis com factualidade.
Espera-se que informações sirvam para agir, ao passo de que informações tem mais chances de servir à transmissão de crenças96:
For what people need and want first and foremost is true information about their world – information that makes it possible for them to plan their actions, by enabling them to make predictions about the consequences that the different lines of action open to them might have.
But none of this should blind us to the fact that it is nevertheless linguistic information […] – information about how the world might be, rather than information about how it actually is – that is the central notion in relation to human language; it is this kind of information that is language’s principal commodity, not the kind of information that has truth built into it. One indication of this is […] about the interpreter’s handling of both non-presuppositional and presuppositional content that is motivated by the concern for truth is ultimately not about the truth as such but about what the interpreter thinks is true. It is because the interpreter can represent the world as being of a certain kind, and thus imagine it to be of that kind, that he is also capable of thinking that it is of that kind. But in the case of thought, as in that of language, the commitment to the world actually being of a certain kind is distinct and detachable from the conception of a world of such a kind as such. This distinction – between truth and mere possibility, or, if you prefer, between belief and imagination – is at the core of information both as a cognitive and a linguistic commodity.
Parece haver um pequeno indicador mental que nos informa se uma história é considerada verídica ou não, se aconteceu conosco ou é produto da nossa imaginação. Como uma memória nossa que atribui a cada caso um tipo de factualidade. Este indicador existe em cada conto, em cada lenda, conversa, relato, fofoca, rumor, boato, disque-disque, sonho ou devaneio que nos chega? Se existem, o quanto ele é estável? O quanto ele pode ser subitamente a(dul)lterado, misturando essas atribuições? Será que o excesso de informação não nos está nos confundindo e ofuscando uma classificação até então mais ou menos estável do que seria fato do que seria ficção? Sabemos, desde de já, é muito trabalhoso fazer essa triagem e separar uma coisa da outra.
References
Benjamin (2007) pág.90. Fazendo um paralelo rápido, Gramsci talvez tivesse a mesma percepção sobre a informação noticiável, e dela fazia uso tático, vide a Introdução de Gramsci (1999): Convidado por um editor amigo, antes da prisão, para reunir em coletânea alguns desses artigos, Gramsci se recusou a fazê-lo, alegando que, tendo sido escritos “para o dia-a-dia”, tais artigos eram destinados a morrer “tão logo se encerrasse o dia”. O presente texto também foi escrito no calor do momento, mas na vontade de que resista a ele, uma intenção que dificilmente será efetivada. Escrito como panfleto mas cozido lentamente, tende igualmente a arder no fogo dos tempos.↩︎