13 Lixificação
Versão 0.1.1 - 21/12/2025
Talvez um novo tipo de demência esteja sendo engendrado, baseado na atrofia do pensamento lento e no estímulo de respostas rápidas encorajadas cada vez mais por “microdoses” de recompensas, como nos ciclos viciosos das notícias e das notificações115, que vão da expectativa crescente até o esquecimento,
O caso das notícias e do seu engajamento em campanhas pela atenção e replicação é mesmo espetacular. Elas não ajudam a resolver os problemas de que tratam, e apenas os exploram ainda mais.
A dinâmica das notícias é planejada para ser viciante, aditiva e adictiva. Consumir notícias provoca a falsa impressão de que o mundo está prestes a acabar e que, se acompanharmos os acontecimentos recentes por tempo suficiente, testemunharemos um grande desfecho lógico para qualquer história – de uma esperada condenação até o próprio fim do mundo. Talvez queiramos mesmo ler tantas notícias na expectativa de que este mundo esteja acabando logo para que outro melhor surja em seu lugar. Os mercadores de notícia, assim como outros atores informacionais, vivem desse “engajamento” – palavra que deixou de significar um comprometimento ativo para designar um processo de zumbificação de “usuários” viciados em informação. Para mantê-los engajados, os mercadores da notícia precisam fornecer informações mais e mais alarmantes e radicalizadoras, num crescente que tende à invenção de factóides quando o estoque factual acaba, de modo que as notícias falsas tendem a convergir ou suplantar a notícia factualizada, processo magistralmente consagrado no filme “A Montanha dos Sete Abutres”116.
A audiência é estimulada e clama sempre por mais: as maiores façanhas, os maiores recordes, a pessoa que come mais em menos tempo, os assassinatos mais brutais. Quem oferta informação – e compete por atenção – tende a entrar nesse clima de disputa e deve se auto-explorar para satisfazer expectativas sempre maiores e sempre insatisfeitas. Mesmo conteúdos gerados por “Inteligências Artificiais” podem perpetuam essa dinâmica. A radicalização aqui surge como uma dinâmica de informações mais e mais extremas que nunca chegam a um desfecho e sempre demandam a “fidelização” da audiência.
Essa dinâmica de “engajamento” constante e radicalização é favorável ao uso ideológico, especialmente por alas fascistas. Como explica Tarcízio Silva117 sobre esses circuitos de ódio,
Se extremismo gera engajamento de espectadores e o sistema algorítmico faz ajustes na recomendação de conteúdo para manter o usuário no serviço, a tendência é que tal usuário consuma mais e mais conteúdos extremistas. Um estudo de Bernhard Rieder e colaboradores mostrou que as redes de recomendação entre vídeos no YouTube e as flutuações nos rankings de visibilidade em espaços como a busca interna da plataforma favorecem muito o que descreveu como “exploradores de nicho altamente ativos para ganhar níveis excepcionais de visibilidade. Aproveitando-se de controvérsias e audiências legais, esses canais consistentemente apareceram nas posições de destaque.
Há anos, a radicalização crescente do usuário por meio de recomendação de conteúdo cada vez mais extremo e “inflamatório” é reportada por ex-funcionários que vazam informações e por estudos de big data. O levantamento de Manoel Horta Ribeiro e colaboradores identificou que canais extremistas cresceram consistentemente desde 2015 e que eles promovem a migração não só de visualizações, mas também de comentários dos usuários. Descobriram que “um número significativo de usuários comentadores sistematicamente migra de comentar apenas em conteúdo moderado para comentar em conteúdo mais extremo”. Zeynep Tufekci reflete sobre a necessidade de se questionar como sociedades permitem a concentração financeira em corporações que literalmente lucram com a circulação de ódio:
Nós estamos testemunhando a exploração computacional de um desejo humano natural: de olhar “atrás da cortina”, de se aprofundar em algo que nos engaja de algum modo. Quando clicamos e clicamos, somos levados pela sensação excitante de descobrir mais segredos e verdades mais profundas. YouTube leva usuários pela “toca do coelho” do extremismo, enquanto o Google aumenta a venda de anúncios.
O desejo humano de buscar o chocante frequentemente se associa à filiação a teorias conspiratórias ou à confiança em dados factualmente errados, mas que corroboram o conforto em crenças discriminatórias ou em sistemas de poder e privilégio, como o racismo estrutural. A busca ou visualização de conteúdos com essas motivações pode ter resultados desastrosos em termos coletivos e em manifestações individuais extremas.
O vício em informação é um vício em novidade, facilmente canalizável para o surpreendente que prepara a pessoa a aceitar as únicas conclusões possíveis de premissas e informações previamente selecionadas. Aliado ao apelo futurista da velocidade, neutraliza a capacidade crítica individual, numa guerra permanente à contemplação que incentiva “gastar” o mínimo de tempo em cada “bloco” de “informação”, pulando para o próximo item de uma lista infinita118 até que, na derrota pelo cansaço e tendo sorte, alguém tem a sutil impressão de que “são sempre as mesmas notícias”, e que portanto não há notícia, e que nada disso resolverá seus problemas. Para então tentar descansar o mínimo, e recomeçar… se tiver essa sorte, se antes não for completamente fisgado pelas narrativas…
O uso de toda essa escumalha para destruir a política e a capacidade de contribuir ativamente na resolução dos problemas coletivos resulta num conceito de “Informação” em estágio avançado de lixificação.
Informação está deixando de ser o componente formativo das coisas e está passando a ser aquilo que as deforma. De matéria prima para rejeito, para lixo.
Quando um elemento técnico se torna muito fácil de gerar, enviar e receber, seu valor cai, não só econômica mas em especial socialmente. Nessas situações de afluência, há tanta informação que não se dá mais tanto valor a meros exemplares. Até aí, mera tautologia. Indo um pouco além, um movimento em falso e uma sociedade passa a gerar mais do que ela necessita, podendo até comprometer recursos escassamente disponíveis. Pior ainda, quando a facilidade de geração implica num desperdício adicional e intencional quando a produção de exemplares excedentes destina-se basicamente a inflar o ambiente e desvalorizar o elemento técnico.
Da facilidade de geração, diríamos que cada vez mais está fácil registrar os momentos das atividades humanas e não-humanas, em frequências limitadas apenas pelas taxas de amostragem, e em resoluções tão altas quanto a acurácia dos equipamentos. Como aponta Zuboff (2019), cada atividade humana pode gerar um excedente informacional, havendo então informações geradas pela atividade em si e um excedente sobre, ou a respeito daquela atividade.
Da facilidade de envio, lembremos que, com a queda do custo de envio de mensagens, estas se multiplicam119:
“Toda a vida moderna repousa na possibilidade de multiplicar as informações por um preço mínimo” (Brillouin, 1959, p. 154).
Anteriormente, a produção e o envio uma mensagem eram custosos, fossem estas recados ou a escrita de um livro. Era necessário considerar, pensar e trabalhar o conteúdo da mensagem.
O envio displicente de mensagens gera uma condição precarizante. É muito fácil pedir coisas, divulgar coisas e poluir as caixas de mensagens das pessoas. Consequências da hiperexposição informacional incluem a amnésia e o esgotamento (“burnout”) e também uma pré-disposição à “programação” via sugestionamento, como discorrido no capítulo anterior120.
Esta facilidade de envio converte o aparato comunicacional em máquinas de amplificação e multiplicação das ansiedades:
O envio e recebimento acelerado de uma mensagem pressiona a parte receptora a um envio mais e mais rápido de uma resposta e mantém a emissora numa expectativa crescente da redução do tempo de recebimento de uma resposta.
Quanto mais rápido alguém responde uma mensagem, mais incita a outra parte a responder mais rápido, num ciclo vicioso até que alguém consiga encerrar a conversa, sem longas, milongas ou delongas. As trocas de mensagens tendem então a serem compactas e telegráficas. Mas resumir é muito difícil em geral…
O custo do envio de mensagens ficou tão baixo a ponto de, juntamente com a facilidade de envio, ter ocorrido uma inversão: é mais fácil enviar e receber mensagens do que se manter em silêncio, do que não enviá-las e nem recebê-las! Hoje é preciso de muito esforço para não checar por mensagens, e resistir à tentação de respondê-las.
Assim a Informação comprime ainda mais nosso cérebro e assassina o tempo. De tanto excesso, ela obriga ao mínimo dos resumos, só para comunicar se vai dar certo ou não, quando chegará o fim desses tormentos, quanto haverá na conta bancária, quando alguém vai morrer etc. Não é o laconismo forçado pela estreiteza do canal – a situação “telegráfica” anterior, mas pela quantidade de mensagens que aumenta tão logo a banda alarga.
Em termos de reprodutibilidade de conteúdo, a queda do custo da reprodução de mensagens tornaram muitas obras mais acessíveis. Esta é a essência da revolução da imprensa de tipos móveis de Gutenberg, e estreitamente ligada às revoluções que desaguaram no Iluminismo: as ideias, o conhecimento etc ficaram mais disponíveis, e o conceito de propriedade intelectual aparece como contra-revolução para frear a democratização e controlar o acesso – dificultando que setores menos favorecidos dispusessem de conteúdo crítico –, ao mesmo tempo em que concentrou o enriquecimento na mão dos poucos donos das casas editoriais e futuramente nas gravadoras, estúdios de cinema e outras licenciadoras de informação.
As obras consideradas “refinadas” e de “qualidade” acabavam restritas a círculos abastados – não somente pelo custo dos exemplares como especialmente pela “bagagem” educacional necessária para consumí-las. As demais, reproduzidas em escala, vendidas a preços mais acessíveis e com menos requisitos. Contrariamente à possibilidade de universalização de conteúdos, o crescimento acelerado porém restringido da reprodutibilidade levou ao efeito nocivo da competição entre conteúdos, dando especial vantagem os “enlatados” e “pasteurizados”, industrializados, baratos e prontos para o consumo – uma série chamada “Reader’s Digest” é só um dos exemplos explícitos –, muitas vezes ofuscando a troca de ideias e conhecimento, fundamentais para a prática política.
Reprodutibilidade, então, não é uma propriedade de acepção única. Algo pode ser facilmente reprodutível e no entanto ser facilmente quebrável. O tipo de reprodutibilidade que se fez mais presente nos suportes materiais da informação foram aqueles que aumentaram a quantidade de conteúdo armazenada com maior facilidade de reprodução (reprodutibilidade de conteúdo). Por outro lado, houve uma fragilidade crescente e pouco aparente na conservação, especialmente dos materiais originais, assim como um aumento da complexidade necessária para reproduzir a tecnologia (reprodutibilidade do suporte material)121.
Neste contexto, as obras não foram reproduzidas para durar, mas para circular e difundir. A durabilidade nunca foi prioridade.
À esta tendencial amnésia do suporte material soma-se àquela que, paradoxalmente, faz com que a quantidade de informação crescente produza cada vez menos memória na mente das pessoas. Temos acesso a tanta memória externa e memorizamos muito pouco internamente.
Aquilo que antes trouxe valor deixa de ter valor. Polt (2015)122 comenta sobre um outro paradoxo trazido pela própria informação: em grande quantidade, ela deixa de fazer sentido:
Ironically, information now blocks our way to the forma or essence (Heidegger ZS, 58/GA 89, 75). “The more frantically the volume of information increases, the more decisively the misunderstanding and blindness to the phenomena grows” (ZS, 74/GA 89, 96)
References
Notificação nem sempre significa ou significou algo positivo, haja vista as notíficações de oficiais de justiça.↩︎
Morin (2005) - Terceira Parte - Cap. 2 - Seção 5 - Nota de Rodapé 6, pág. 440. Ou, no original de Brillouin (1962) pág. 294: The very small value of the negentropy corresponding to rather large amounts of information is the fundamental reason why transmission of information is usually so inexpensive. Writing, printing, and electrical communication cost very little in entropy units. Their cost in dollars is correspondingly low. Modern life is based on these facts, and would be completely different in a world where the negentropy of information had a larger value.↩︎
Temas a serem também tratados ao longo de outro trabalho em andamento sobre o espectro do que temos considerado como “tortura”.↩︎
A questão da reprodutibilidade e da preservação tem vários meandros, porém os arquivistas do cinema sabem que o “digital” provou ser um ótimo suporte de difusão, e um péssimo para preservação, cujos detalhes estão no relatório “O Dilema Digital” – The Science and Technology Council of the Academy of Motion Picture arts and Sciences e Cinemateca Brasileira (2009). O “digital” parece, num relance, totalmente desprovido de suporte material, mas enquanto conteúdo é o que mais depende de equipamentos sujeitos à obsolescência industrial.↩︎